Dia desses um cunhado, num almoço em família, anunciou orgulhoso que se tornara vegetariano. Acho isso fashion desde que o tipo prepare seu próprio rango, não é justo que os outros desperdicem seu tempo e dotes culinários elaborando pratos à base de abobrinha e chuchu para entojado nenhum.

Desconfiei, no entanto, apesar do pernil desmanchando, do suculento frango ao molho de laranja e do filé à parmegiana de dar água na boca que o picareta forjou a transição em cima da hora porque estava de olho e conhecia a fama das minhas batatinhas fritas que, aliás, a família inteira adora e sempre pede para eu prepará-las de baciada.

Acredito que o espertinho pretendia apenas guardar espaço na pança para detonar as batatinhas. E ainda, como se fosse um rábula, fez uma defesa falsa e compungida que sentia muita pena dos animais, coitadinhos, todos filhos de deus, pressentiam o abate, Pensam que não sentem dores, que não sofrem, perguntou, por isso não como mais carnes, só vegetais, disse resoluto.

Ah, cara de pau, raciocinei, nas minhas fritas é que você não vai meter as mãos nem os dentes. E assim, enquanto as mulheres arrumavam a mesa e finalizavam as carnes e enquanto eu preparava as fritas à minha moda, comecei um discurso e atraí a atenção de todos ao dizer muito sério, talvez vocês nunca ouviram sobre isso mas sabiam que as batatas também são seres vivos, nascem, crescem e morrem como todos nós, também são criaturas de deus, e vejam só quanta ingratidão temos com as coitadinhas, como somos brutos, imaginem que sob a terra, todas juntas, papai, mamãe e filhinhos reunidos naquela escuridão gostosa, fresca e segura, crescendo rechonchudas, de repente a mão do homem as alcança e as arranca do seu lar separando famílias inteiras, cortando-lhes a seiva, atirando-as como pedras em caixotes, expondo-as ao sol, lavando-as e esfregando-as como se fossem contagiosas.

Nesse momento eu já descascava as batatas e as cortava ao meio no sentido longitudinal, continuei. E quando as inocentes vítimas pensam que seu sofrimento está chegando ao fim nós as pegamos na feira, as apertamos, segregamos aquelas que não nos interessam, depois arrancamos-lhes a pele, extraímos seus olhinhos e, sem piedade, as cortamos ao meio e em fatias transversais como estou fazendo agora, olhem, vejam o líquido que escorre delas, é seu sofrimento (e quase enfio uma fatia na cara do fingidor), me digam se essa gota que cai não poderia ser uma lágrima, perguntei quando punha o amontoado de lâminas numa grande tigela. Não bastasse isso, prossegui, ainda salgamos seus cortes, acham que não sentem o ardor, claro que sentem, só não conseguem dizer, e quando as pobrezinhas creem que a tortura vai se acabar afogamos todas em água gelada, uma asfixia, um choque térmico que nenhum de nós suportaria, mas não pensem que a agonia acabou pois, depois de afogadas, depois de tanta violência, elas nem sonham que o pior ainda está por vir.

Eu havia posto óleo para aquecer numa frigideira enorme e já dava para notar a quentura braba que subia. Então, eu disse afetuoso, como último consolo, em razão da dor maior pela qual ainda vão passar, eu as tiro da água e as enxugo para retirar o excesso de umidade e, ao mesmo tempo, faço uma breve oração pedindo perdão aos tubérculos esquartejados. E assim, meditativo, prendendo um feixe de batatas fatiadas entre as mãos dentro de um guardanapo, mantive-me em silêncio por um breve momento até a gordura finalmente dar o ponto. Pronto, disse e retomei minha narrativa, agora podemos colocá-las no óleo. E despejei o feixe inteiro que caiu gostoso chiando dentro da frigideira.

Então olhei para a cara angustiada do tonto do meu cunhado que, nessa altura, ou estava morrendo de pena das solanáceas falecidas ou buscava uma boa desculpa para voltar atrás e devorar a sua parte. Percebi que todos se agitavam quando comecei a retirar as porções, uma travessa abarrotada de fatias sequinhas, douradas e crocantes. Espalhei sal sobre elas como última tortura e fui em direção à mesa já completa de carnes e saladas. Coitadas, eu disse para arrematar, seres vivos como nós, separadas ainda criancinhas, despeladas, fatiadas, salgadas e agora, padecimento maior, serão trincadas, mastigadas e deglutidas, pode uma coisa dessas perguntei a ele e lhe ofereci os petiscos.

Não, não, obrigado, disse e engoliu num golpe a saliva renitente, vou ficar só na salada. Passei então a travessa às crianças que atacaram as fritas como selvagens, depois os adultos as liquidaram. Ouvia-se apenas o croc croc croc das batatinhas estalando nas bocas. Então, só para atormentar, disse a ele, olhe lá, heim, alface e tomate também têm sentimentos… e não vá morder a língua pois ela não é vegetal.

Agliberto Cerqueira
Publicitário pelo Instituto Metodista, aprendiz de farmácia na infância, executivo da indústria automobilística, diretor de agência de promoção e consultor na área de comunicação e marketing. Em 2006 publicou o livro de contos "O quá quá quá do cisne preto - Um passeio ao som do rádio". Quando não está em consultoria e nem pagando imposto, lê muito, escreve quando possível e toca violão.
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