Quando ouvi os boatos de que todos os que se sentissem culpados deveriam comparecer ao salão de baile na manhã seguinte, a primeira coisa que me aconteceu, depois de um certo frio que me percorreu a espinha, foi concluir que eu nada vinha fazendo de errado e não devia me preocupar com as notícias.

Porém, como das outras vezes, me assaltara a dúvida a respeito dos meus próprios pensamentos e, em razão da truculência e do poder que nos dominava, decidi que era melhor comparecer e mostrar colaboração ao invés de ficar em casa, angustiado, esperando que alguém batesse à porta como um sinal dos meus pecados.

Passei a noite inteira acordado, querendo dormir a todo custo, ruminando lembranças, fatos, conversas, olhares ou gestos que pudessem ter de alguma forma me incriminado e, apesar de todo o esforço, não identifiquei no meu passado absolutamente qualquer deslize.

Mas algo de fato havia acontecido porque, caso contrário, não fariam com que os boatos chegassem até mim sem motivo. Quando finalmente, lá pelas tantas, consegui adormecer, pareceu-me ouvir alguém batendo suavemente à porta. Levantei-me às pressas, assustado, vesti-me com as mesmas roupas do dia anterior e saí à rua.

O dia amanhecera sem sol e um vento gelado e úmido zunia pela calçada. Não vi ninguém. Fui em direção à construção que abrigava o grande salão de danças da cidade e tive a impressão de que alguém me seguia a distância desde que eu saíra de casa. Era um prédio antigo contíguo à estação central de trens. Fora esquecido no amarelo desbotado e tinha vidraças altas e empoeiradas pela sujeira das décadas de terror. Grossas grades de ferro haviam sido embutidas nos vãos das janelas e enormes ferrolhos instalados em todas as duas portas depois que a música e a dança foram proibidas no país.

Na fachada, no lugar do homem e da mulher de luz neon colorida que, abraçados, dançavam há anos, erigiram uma estátua forjada em pólvora e metal, meio inclinada para a frente, onde um homem que não se parecia conosco segurava um boné numa das mãos e na outra, na ponta de um braço triunfante, uma espada cravejada de glórias de mentira. Um monumento cor de chumbo brilhante que saltava sobre nós da sacada imunda. Era ladeado por duas bandeiras que sempre mudavam de cores e listras: símbolos da pátria que não podiam ser simplesmente olhados. Deviam ser humildemente reverenciados.

Uma fila imensa de homens e mulheres fora organizada logo na entrada. Fui o último a chegar e isso colocava-me numa situação difícil porque poderia significar, claramente, que eu ficara em dúvida sobre minha culpa até o último momento. Em outras ocasiões eu já estivera no começo e no meio da fila e nunca notei diferença no tratamento que nos davam dentro do salão.

Eram sempre torturas e sofrimentos em diferentes graus que eles justificavam necessários para expiar erros nossos quase nunca cometidos ou apenas falhas imaginárias. Talvez, quem sabe a dedicação de estar constantemente à frente de todos na fila pudesse significar, depois de anos de confissões inocentes e ridículas, que alguém muito maior do que nós nos olhasse à distância e sem que pudéssemos vê-lo e, por piedade, confortasse nosso íntimo desespero aliviando-nos do pecado e varrendo de nossas mentes até o que sempre fôramos, para que só dessa forma o perdão inalcançável fosse obtido e nunca mais a dúvida eterna nos afligisse.

De onde eu estava não conseguia enxergar muito bem o portal de entrada do edifício. Apenas parte dele. Porém, toda vez em que me distraía e sem querer olhava naquela direção via a estátua com os buracos dos olhos fixos nos meus.

Então virava a cabeça rapidamente porque não tinha a certeza de que minha contemplação fora humilde e reverente. Tinha a convicção, sim, de que, desta vez, eu não escaparia. Apesar disso, por ser o último da fila, poderia até fugir se quisesse. Mas as informações que chegavam, sempre murmuradas e terríveis, eram que os vigias, que podiam estar em qualquer lugar, por lei e ordem suprema passaram a entender que todos os que ali já se encontravam eram espontaneamente criminosos e, por isso, poderiam ser perseguidos assim que escapassem e brutalmente espancados e trazidos arrastados no caminho de volta ao longo da fila. Daí então, quando capturado e já com a agravante de também ser fugitivo da justiça, o sujeito era coloca do à frente de todos os demais e rapidamente entrava pela porta central por onde só passava um de cada vez.

O medo do pior fazia com que a maioria não tentasse escapar pois, apesar de já serem culpados porque assim se sentiam, todos, sem exceção, ainda tinham uma certa esperança de que poderiam ser dispensados até que os próximos boatos chegassem, quando então se entregariam novamente. Porém, em algumas ocasiões, era tão medonha e aterrorizante a agonia da espera, que alguns apenas ameaçavam correr só para serem capturados e levados para a entrada principal a fim de abreviarem seu sofrimento.

Começaram a circular rumores de que lá dentro seríamos obrigados a respirar grande quantidade de um gás que fazia com que os corpos inchassem como bolhas e flutuassem pelo salão. Diziam que a pele esticava-se toda, porém, sem estourar os poros, como seria mais tradicional em torturas desse tipo. Havia convulsões, vômitos, alucinações e, por fim, os corpos tombavam calmamente, uns ao lado dos outros, como amigos antigos e inseparáveis.

Eu penso que essas informações eram mais um tipo de tortura, porque ninguém havia saído de dentro do salão para nos contar e aqueles que estavam contra nós jamais apareceram. A fila caminhou rapidamente como uma serpente e foi engolida de vez pela boca faminta da porta. Quando percebi estava eu defronte ao pórtico, abaixo das bandeiras, que nesse ínterim haviam mudado de cores e possuíam agora listras transversais com um grande pássaro bicudo ao centro.

Foi então que notei que a estátua do mártir não tinha cabeça de homem: possuía uma cabeça de pássaro, com um nariz enorme ao invés de bico e semelhante àquela que havia nas bandeiras. De perto também não era uma espada que mantinha erguida mas, sim, uma velha bengala esculpida com todas as verdades escondidas pelo tempo e pela violência. Não sei como nem de onde partiu um tapa de uma mão muito forte e enorme que acertou meu rosto em cheio. Eu havia, por pura atração, olhado a ave e os panos sem reverenciá-los. Não fora humilde o suficiente. E fui o último a passar pela entrada majestosa naquele dia inesquecível.

Imediatamente percebi o ferrolho travando a porta principal pelo lado de fora. De outros pontos do grande salão, atopetado de pessoas muito parecidas comigo, chegaram sons das batidas das demais portas se fechando. O silêncio e a sombra ficaram encerrados na antiga pista de dança. Quando já esperávamos pelo gás uma melodia ecoou áspera e melancólica

dos alto-falantes pendurados nos tetos. Nos abraçamos sem nos conhecer e começamos a sentir um agradável perfume que invadia o salão. Vimos que uma fumaça esbranquiçada saía calmamente por orifícios minúsculos instalados em todas as paredes. E respiramos os últimos ares. Tive a impressão de ouvir as rodas de um a composição correndo pelos trilhos da ferrovia e imaginei vagões carregados de cadáveres amontoados.

Logo depois me senti inchando. A pele esticando-se toda. Achei que meu corpo flutuava e resvalava nos corpos dos outros. Vomitei e ouvi ânsias, tosses e vômitos ao meu lado. Golfadas de bílis arremessadas em meio à densa fumaça do gás. Meu corpo foi ficando pesado e pude ver nitidamente todo o futuro que eu jamais teria. Vi minha casa outra vez. Minha mãe e meu pai com a criança no colo. Vi a esposa prometida. Os filhos que não poderia amar. Vi o meu país cantando e dançando de novo debaixo de sol. Eram já as alucinações. A música triste voltou exuberante com o delicioso perfume da morte.

Então todas as portas e janelas do antigo salão de baile foram se abrindo com estrondos de ferro e madeira. Por elas entraram vendavais estrangulados, ventos dilacerantes e brisas mornas e macias. Entraram e rodopiaram sobre os corpos onde espíritos e ideais dançavam de mãos dadas no amplo espaço do templo do absurdo.

Depois, lentamente, os dançarinos se deixaram levar como ovas frescas que viajam por mares de todo o mundo onde vão gerar novas crias e multiplicar esperanças. O último sopro levou-me também para longe junto com os /demais. Todos partiam. E enquanto me afastava pude contemplar a mim mesmo, estendido, com o rosto marcado de vermelho pelo tapa que levara. Ainda assim, livre e sereno. Havia aprendido a sorrir toda vez antes de morrer.

Agliberto Cerqueira
Publicitário pelo Instituto Metodista, aprendiz de farmácia na infância, executivo da indústria automobilística, diretor de agência de promoção e consultor na área de comunicação e marketing. Em 2006 publicou o livro de contos "O quá quá quá do cisne preto - Um passeio ao som do rádio". Quando não está em consultoria e nem pagando imposto, lê muito, escreve quando possível e toca violão.
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *