É possível separar Márcia da Filosofia? Márcia Tiburi começou a ser mais conhecida do grande público quando passou a compor, há quase quatro anos, o time de mulheres que apresenta o programa de televisão Saia Justa, do canal GNT.

Mas, antes disso, ou apesar disso, Márcia já era conhecida por sua maneira incomum de se comunicar, dizendo o que pensa – e principalmente como pensa – em relação a quase tudo, bem como pelo fato de ter sido uma das poucas mulheres a ter sido mestre e doutora em Filosofia, uma área do conhecimento tradicionalmente masculina. Também já era conhecida – e continua sendo – pelos seus alunos e ex-alunos, uma vez que é professora desde 1995 em cursos superiores com disciplinas vinculadas à Filosofia.

Uma das coisas que mais chama atenção quando se conhece Márcia, é sua beleza natural, sem subterfúgios ou artifícios comuns a quem se habitua com o meio televisivo, que costuma submeter os apresentadores a sessões de maquiagem e cabeleireiro para uma melhor aparência frente às câmeras.

_MG_2869 reduzidaPara as leitoras: Que desejam ser donas de seus corpos e de seus desejos.

A pele clara, os cabelos e olhos escuros, os lábios carnudos e bem desenhados, o sorriso maroto e o olhar grave, e a falta de rugas no rosto ajudam a entender o que deve causar estranheza às pessoas – e talvez a ela mesma quando se vê ao espelho – quando descobrem que ela completou 40 anos em abril deste ano e já é autora de, nada mais, nada menos, do que 16 livros, entre acadêmicos e literários (ou serão filosóficos?).

Em uma entrevista para o Plena Mulher, Márcia responde a perguntas que vão da curiosidade sobre a sua vida pessoal a questões que revelam uma pretensão nossa de separar a mulher da filósofa. Depois de ler a entrevista, você mesma pode concluir se conseguimos ou não alcançar esse objetivo: é possível separar Márcia da Filosofia?

Você completou 40 anos em abril deste ano. Quais semelhanças e diferenças você vê entre as mulheres com essa idade nos nossos dias, na época da sua mãe, da sua avó, e das mulheres ao longo da História na sociedade ocidental?

Não sei pensar isso, porque não tenho uma pesquisa sobre o que é ter 40, ontem ou hoje. Até porque acho que idade é um conceito que implodiu. Vejo pessoas de 70 que parecem ter 45 ou que agem como quem tem 15 e outras que tendo 50 parecem ter 90 ou agem como quem já morreu. Eu me sinto tão jovem que minha filha de 13 anos vive me corrigindo. Ela parece muito mais madura e ponderada do que eu.

saia-justaMaitê Proença, Mônica Valdvogel, Márcia Tiburi e Bete Lago no programa Saia Justa.

Penso que a idade é um estado da felicidade ou da infelicidade, é uma experiência de interioridade. Não vou viver minha vida pensando na minha cronologia. Por isso, quando festejo meus 40, ou 30, ou 10 ou 90 ou 60, festejo porque é bonito festejar, não porque estou esbanjando ou economizando meu tempo ou tentando lucrar com ele.

Quando fiz quarenta as pessoas diziam “não parece” como se a idade fosse uma questão de aparência. Diziam, claro, por gentileza, mas eu via aí também uma certa vontade de compensação que eu de modo algum desejo. Acho que esta é uma grande confusão que pesou sobre as mulheres porque elas foram medidas e pesadas e sobre elas se colocou um preço, mercadorias que eram. Cabe às mulheres romperem com isso dando de ombros pra sua idade. A idade pesa sobre os homens?

Talvez isto esteja começando a mudar. Eu vejo hoje que, aos 40, não há para mim nenhuma diferença em relação a quando eu tinha 20 ou 30. A não ser o fato de que me sinto mais rica de experiências. Que posso olhar um pouco pra trás quando acho necessário pra ver se o passado me importa. Ainda não tive muito tempo pra isso.

Você contou num bate-papo do ‘Sempre um Papo’ que começou a escrever por volta dos 13 anos e que quando sua mãe viu sua produção perguntou por que você escrevia tantas bobagens. Dá para notar que você seguiu escrevendo, uma vez que tem 16 livros publicados! Mas, de um modo geral, qual a influência – ou poder – que você credita às mães sobre a personalidade, caráter e futuro dos seus filhos?

Mãe é uma coisa que ninguém pode esquecer. Mesmo quando a gente esquece é porque lembrou antes. Há toda a história da psicanálise para falar delas. Eu deixo para outros.

Filosoficamente, é complicado falar, pois há muito pouco tempo se começou a falar nisso. Particularmente, eu penso que “mãe” é um tipo de identidade caracterizada pelo desdobramento da subjetividade.

Uma mãe é sempre muitas pessoas, todas as que ela pariu e que não pertencem mais a ela. Já pensou como é complicado ser alguém que está fora de si, que vê seu outro – gestado nela mesma – alienar-se dela e nunca mais voltar? Pode parecer brincadeira, mas a condição de mãe é mesmo a de certo enlouquecimento. A mãe é uma subjetividade múltipla e que não pode alcançar a si mesma.

Penso que elas devem ser libertas de si mesmas, ainda mais que em um mundo como o nosso, que exige identidade a todo momento, ela é uma identidade não identitária. Daí que todo mundo trate da Mãe como um ser universal do qual podemos nos apropriar a qualquer momento.

Hoje temos chance de ser mais felizes como mães porque temos certa consciência da loucura. Deve ter sido muito pesado para as mulheres terem sido mães nos moldes antigos. Hoje, esta vida de igual para igual é bem mais leve. Até porque os filhos querem nos superar, nos deixar, nos colocar em uma casa de repouso confortável quando estivermos velhinhas. E isso é ótimo.

eu e afonso em junho 2010Márcia em uma das sessões do “Sempre um Papo”

Você é mãe de uma menina já quase adolescente. Como você se relaciona com ela e quais suas expectativas em relação ao mundo que ela já encontra hoje e àquele no qual viverá e precisará se desenvolver?

Eu trato minha filha como minha filha, me preocupo, me dedico a ela, mas não sou nem de longe uma mãe muito “completa”. O que eu pratico é uma total sinceridade, até porque não sei ser diferente com quem eu convivo. Para mim, a possibilidade de ser sincera, mesmo com a chance de errar, é vital para uma relação. Deste modo, desde que minha filha nasceu, eu ajo com base na sinceridade. Sinceridade é expressão e comunicação. E acho que uma boa base para uma relação ética, de muito respeito.

Quanto ao que espero do mundo de hoje e de amanhã? Penso que entregamos estes filhos à vida e que não nos pertencem. Busco uma relação de respeito e amizade com ela – sem invasão de espaço – e espero que ela leve tais valores para sua vida. Como toda mãe, espero que minha filha seja feliz, mas não desenho sua felicidade como um projeto meu. Tomo cuidado para não me intrometer em seus sonhos. Mas ela é, certamente, um sonho meu.

_MG_2860Livros: Criadores e criaturas, companheiros da vida de Márcia

Em uma entrevista, você disse que ‘’viver é uma coisa insuportável, mas mesmo assim, se planta, se tem filhos e se escreve um livro’’. Estas ações são pra tornar a vida mais suportável?

Quando eu falei que a vida era insuportável, eu estava me referindo a um modo meu de experimentar a vida – e provavelmente a um certo momento – não a uma característica da vida. Além disso, há uma questão semântica: eu posso tranquilamente dizer que não suporto a vida porque ela não é um peso, que eu simplesmente a vivo em vez de suportá-la. Do ponto de vista objetivo, a vida é mais complexa do que este tipo de juízo – suportável, insuportável – pode dar conta.

Segundo alguns filósofos, deveríamos “duvidar de tudo”. Você concorda?

Eu duvido.

Você já disse que a “indústria cultural produz muito lixo”. Você acha que a leitura, como um dos alicerces da educação, seria um caminho para salvarmos a cultura?

É uma falácia dizer que a educação não seria a solução dos problemas sociais. Se pensarmos que a educação é o ponto estratégico de mudanças sociais, políticas e culturais, então a educação é a saída, a arma, o dispositivo que podemos usar a favor de um mundo melhor, mais democrático, mais justo.

Em uma critica ao filme Tudo pode dar certo, de Woddy Allen, você diz “Não estamos nunca prontos pra viver a nossa própria vida”. Você acredita mesmo nisso?

Não estamos prontos porque a vida é uma aventura. Quem estiver pronto não deve estar entendendo muito bem o que é viver. Podemos planejar, mas controlar é impossível.

Sabendo-se que a Verdade não está em nenhuma religião, manuais de auto-ajuda, ou em livros de filosofia e de psicologia, existe alguma coisa que você considere como verdade irrefutável?

Não.

Você já sofreu algum preconceito como filósofa, sendo esta uma área predominantemente masculina?

Mulheres sempre sofrem preconceitos. O mundo é patriarcal. Logo, também eu já tive minhas experiências, mas sempre sutis. E não saberia narrar eventos que tivessem importância. Mas ao mesmo tempo não posso dizer que não existiram ou existem. Mas não me preocupo com isso em relação a mim, sou livre e dona do meu projeto intelectual.

Você é uma mulher que usa o pensamento, a cultura, o intelecto, a filosofia… Como lida com a vaidade externa?

Vaidade visual? Não sei bem o que dizer sobre isso. Eu sou muito despreocupada, ao mesmo tempo, tento ser normal, cuidar de mim como cuidaria de outra pessoa que estivesse aos meus cuidados.

Qual é a sua “filosofia de vida”?

A filosofia.

Você tem hobbies, atividades não ligadas a trabalho que lhe proporcionem prazer, sozinha ou em família?

Não, minha vida profissional é totalmente ligada ao meu prazer.

tiburi1“Mulheres sempre sofrem preconceitos”

E, por falar em família, como e em que níveis se dá o seu relacionamento com o marido, filha, pais e demais familiares? Você consegue desligar de filosofar sobre as coisas e as pessoas?

Eu já casei algumas vezes e já separei. Sou muito nômade, faço nenhuma distinção entre meus amigos e minha família. Acho que convivo mais com amigos do que com família, até porque da família só convivo com quem posso dizer que tenho amizade, como por exemplo, meu irmão, minhas irmãs.

Eu não entendo quando você diz “desligar o filosofar”. Eu não sei qual o limite entre o pensamento qualificado a que chamamos de filosofia e a minha vida. Agora, é claro que a vida não é aula de filosofia e eu pouco falo de história da filosofia com pessoas. Ninguém, ao meu redor, espera de mim juízos filosóficos o tempo todo. Sorte minha.

Você se considera uma plena mulher? O que é, para você, uma plena mulher?

Não, eu não gosto dessa definição. É essencialista demais para minha cabeça desconstrutiva. Eu prefiro a minha singularidade para além da questão do gênero. Acredito que o gênero deve ser superado.

Tem alguma observação, recado, sugestão ou conselho para deixar para as leitoras?

Que sejam donas de seus corpos e de seus desejos.

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