No caminho de volta para casa ao atravessar a velha ponte deixando-se conduzir com o pulso preso na mão da avó, pois sua mãe havia sumido no mundo assim que nasceu, a menininha olhou por entre as barras do gradil na direção do córrego apodrecido e enxergou a silhueta da boneca que boiava e balançava levemente enroscada à margem junto ao capim e no meio de galhos secos, garrafas de plástico e restos de lixo.

Parou os passos miúdos, retirou o pulso da mão da avó num repelão e gritou para ela apontando o brinquedo, depois segurou-a pela perna e pediu que descessem pelo barranco no meio do mato até a beirada do córrego para apanhá-lo. A avó hesitou só um instante, continuou a caminhar arrastando a menina, mas, ainda assim, olhou para onde ela apontava. Há muito tempo a netinha sonhava com uma boneca, podia ser qualquer uma, mas que fosse só dela. Já tinha brincado com aquelas emprestadas das amiguinhas, mas nunca era para toda a vida, tinha sempre de devolvê-las. E nas raras vezes em que ganhava uma a pobrezinha nunca vinha completa, ou lhe faltava uma perna, uma das mãos ou todo um braço, os olhos afundados ou vazios, as cabecinhas rapadas ou furadas, sem orelhas ou com os narizes roídos. Jamais uma assim como essa, perfeita, dava para ver, e tão sua que só ela pudesse lhe dar o nome, alimentá-la, contar historinhas e dormirem abraçadas a noite inteira.

Desesperada, dependurou-se no braço da avó e segurou-o com firmeza indicando o caminho que levava à beirada do córrego escuro. Precisava muito daquela boneca, precisava salvá-la daquela imundície e já decidiu que não a emprestaria para nenhuma das coleguinhas. Havia visto primeiro e tinha certeza de que o corpinho, mesmo encardido, estava sim com todos os seus membros apesar de mergulhados naquela massa de lodo e esgoto. Insistiu com a avó e mostrou que dava até para ver os bracinhos e as pontas dos pés que surgiam de vez em quando na superfície escura.

E ficaram ambas no meio da ponte, o córrego sujo correndo ligeiro e fétido por baixo e gente parando para ouvir e entender as súplicas da menina. Agora também já divisavam a bonequinha que flutuava no meio da sujeira. A avó impaciente e decidida a seguir seu caminho. A menina chorando e implorando para que descessem pelo mato até a margem, o brinquedo logo ali.

Então, dentre as pessoas que passavam pela pontezinha naquele momento, um homem parou e prestou atenção à conversa, condoeu-se com o choro da menina e apoiou-se na mureta procurando também visualizar a boneca. Assim que a viu, sorriu, passou a mão nos cabelos da menina e decidiu que iria até lá. A velha insistiu dizendo que não era necessário, muito perigoso, a água contaminada poderia causar uma doença e tudo por causa de teimosia, capricho de criança.

Mas a garotinha, agora abraçada à cintura da avó, apenas soluçava enquanto o homem caminhava em direção ao barranco.

E aumentava o número de pessoas que paravam, perguntavam e permaneciam por ali acompanhando o desenrolar da situação, encostadas ou debruçadas na estreita amurada e olhando ora para a menina e a avó, ora para o sujeito, ora para a boneca que boiava e parecia apenas aguardar.

Em alguns momentos, devido à correnteza que formava diminutas marolas, era possível notar que outras partes do corpinho apareciam sob o escuro do lodo. A menina tinha razão, uma boneca quase nova, dava mesmo para ver a cabeça, parte dos braços, pernas e, vez ou outra, ao acaso da movimentação da corrente, a pontinha das mãos e dos dedinhos dos pés. Sobre a ponte já não havia espaço para os curiosos que assistiam ao resgate. O homem, aos poucos, transformando-se em herói. O rosto da garota de repente iluminou-se mais ainda quando uma mulher, quase junto dela, comentou que dava até para ver a barriguinha apesar de que, ela mesma, tão ansiosa, perdera esse detalhe, que pena. Mas, finalmente, teria seu brinquedo. Imaginou que seria uma menina, assim como ela. Tinha já escolhido seu nome, mas não diria a ninguém até que chegasse em casa com a boneca apertada no colo.

Enquanto o sujeito descia cauteloso, equilibrando-se e medindo os passos na lama da margem encoberta pelo mato, um redemoinho de uma corrente mais forte deslocou e empurrou a boneca para mais perto da beirada e revelou uma parte maior da sua anatomia. A menina então certificou-se, feliz, que a cabeça tinha mesmo um corpo, e cheinho como são em todas as bonequinhas bebês, tinha pernas e bracinhos articulados porque cada membro estava numa posição diferente e, provavelmente, do mesmo jeito em que fora descartado e chegara até ali. Um dos braços parece que pretendia levar a mão à boca, mas a perna esquerda mantinha-se a maior parte do tempo estendida e submersa.

A menina, exultante, deu um puxão no vestido da avó e apontou o seu amigo desconhecido chegando perto do brinquedo e disse que já tinha nome para o bebê mas ainda não podia dizer. A avó se sentia culpada, tocar naquela água poluída, ainda mais um estranho, um perigo as doenças. A menina, todavia, orgulhosa, só esperava que ele a recolhesse rápido antes que as águas escuras a levassem embora.

E, enfim, o sujeito aproximou-se da beirada, estava a um passo do brinquedo.

Vinha com um pedaço de pau e um trapo que apanhara no caminho com o intuito de puxar a boneca para perto de si e retirá-la da água sem tocá-la. Enquanto isso o corpinho manchado de cinza pelo lodo boiava molemente à medida em que a água escura o banhava e como que agarrado ao lixo parecendo um afogado em seu último fôlego. De vez em quando o caldo negro e grosso cobria o corpo inteiro, outras vezes só a cabeça ficava de fora como que buscando um resto de ar. Trazia nos lábios o sorriso de uma paz indefinível e os olhinhos fechados das crianças em seu primeiro sono.

E assim que chegou bem perto da bonequinha o homem esticou o pedaço de pau para puxá-la, mas foi dominado por uma sensação estranha de horror. De cima da ponte e das margens as pessoas acompanhavam a tarefa. A menina sorria feliz na certeza de que chegava ao fim a espera. Iria para casa com o presente que sonhara, a melhor coisa do mundo, enfim, uma bonequinha.

Com cuidado o sujeito puxou o brinquedo para si, ficaria mais fácil retirá-lo da água. E junto com ele vieram a sujeira, as garrafas, o lodo, o lixo e ramas de capim podre. Mas o corpinho, de repente, tornou-se uma coisa estranha, assustadora, não era rígido como o das bonecas. Parecia carne e osso, parecia gente. O homem agachou-se como se fosse tocá-lo mas notou que seu rostinho era muito real para ser apenas um objeto de plástico. Hesitou, ergueu-se e olhou a menina na ponte sorrindo, esperava angustiada e não perdia um só movimento. As outras pessoas, no entanto, conversavam distraídas e já perdiam o interesse, aguardavam apenas o fim que se arrastava. Então, indeciso, pressionou de leve o pedaço de pau sobre a barriga redonda do brinquedo e o ventre da boneca rompeu-se, uma massa escura e gelatinosa vazou misturando-se com a água suja e o cheiro de podre do córrego.

Num espasmo o desconhecido deixou escapar um grito de nojo, virou o rosto transtornado, vomitou o que não tinha no estômago e enquanto vomitava não reparou nas pontas dos ossinhos que surgiam sob a pele no corpo que se desmanchava. Agora só desejava escapar daquele pesadelo. As pessoas na ponte olhavam surpresas e intrigadas. E assim, enojado, em dúvida sobre o que fazer, com o mesmo pedaço de pau empurrou o corpinho de volta para o meio do córrego até que a força da água junto com o lixo, as garrafas de plástico e a lama fizesse a sua parte. Subiu o barranco apressado passando rápido entre as pessoas e desapareceu enquanto a bonequinha, desmantelada, submergia e reaparecia de vez em quando boiando calmamente na água suja e ao sabor da correnteza.

Percebendo o homem afastar-se sem sequer dar por ela, como se nunca a tivesse visto nem tocado seus cabelos, desesperada, a menininha chamou por ele e implorou por sua boneca cujos pedaços, ligados por invisíveis cordões, ainda apareciam flutuando e desmanchando-se entre os detritos.

E como numa onda todas as pessoas correram para o outro lado da ponte e debruçaram-se na mureta oposta para tentar enxergar algum resto daquilo que só o estranho vira tão de perto e por alguma razão deixara partir. A avó consolava a neta porque mãe ela não tinha. E a menina chorava com a cabeça encaixada no meio do gradil com os olhos fixos na água turva e chamando sua filhinha pelo nome.  

Agliberto Cerqueira
Publicitário pelo Instituto Metodista, aprendiz de farmácia na infância, executivo da indústria automobilística, diretor de agência de promoção e consultor na área de comunicação e marketing. Em 2006 publicou o livro de contos "O quá quá quá do cisne preto - Um passeio ao som do rádio". Quando não está em consultoria e nem pagando imposto, lê muito, escreve quando possível e toca violão.
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