Nunca fui tão feliz como sou hoje. Renate Meyer Sanches, 64 anos, nasceu na Alemanha, filha de pais sobreviventes de Auschwitz. Veio para o Brasil com sete anos de idade, foi criada em São Paulo e aí viveu até os trinta anos. Mora em Campinas desde então. Assim que pode, naturalizou-se brasileira, carregando junto a si uma história de vida muito interessante.
Até aos sete anos morando na Alemanha, obviamente falava fluentemente a língua de origem, mas o interesse pelo Brasil fez com que aprendesse rapidamente a língua portuguesa, tanto que em seguida naturalizou-se brasileira. Sua relação com a Alemanha era muito ambivalente, por motivos claros.
Professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP por 38 anos, Renate Meyer Sanches é psicanalista, mestre em Psicologia Social e Doutora em Psicologia Clínica, é autora dos livros: “Conta de novo, mãe – histórias que ajudam a crescer”; Escolhi a vida: desafios da Aids mental; Psicanálise e educação: questões do cotidiano; organizadora e coautora de Winnicott na clínica e na instituição. Mãe de Claudia, Lars e Simone, é avó de Rafael, Naomi, David e Sofia.
Porque a escolha da Psicanálise?
Faz trinta e cinco anos que começou o interesse pela psicanálise, mas, antes de chegar a ela passei, pela Psicologia. Uma batalha, numa época em que a Psicologia era um tabu, ninguém sabia o que era ainda esse estudo, meus pais achavam que, sendo secretária trilíngue, eu ganharia muito mais (risos)… Até hoje eu tenho uma aversão, tudo que tem a ver com secretária, eu tenho pavor (risos). Descobri a Psicologia por acaso. Eu sempre fui uma leitora absolutamente voraz, eu cheguei a ser alfabetizada por seis meses na Alemanha.
E quando começou a interesse pela psicologia?
Eu fui alfabetizada em 1950. Sempre fui uma leitora, como falei acima, voraz! Estava lendo muito bem, minha mãe conta que a viagem demorou um mês, foi em etapas, ela comprou vários livros, depois de uma semana já estávamos na Suíça, e lá eu disse que havia lido tudo. Não dei trabalho nenhum durante a viagem, porque ler era o meu mundo alternativo. Eu acho que o meu mundo real era tão carregado de angústia, meus pais traziam marcas de sofrimento, perder a família toda, foi terrível o que eles viveram. Eu era filha única e, com isso, tudo era em cima de mim. Então quando eu descobri o livro, aliás, antes disso eu já havia descoberto a fantasia, era uma forma de me desligar da realidade, entrar em uma outra dimensão.
Na época do colegial caiu em minhas mãos um livro de Psicologia, achei fascinante, foi uma luta com meus pais, eles não aceitavam aquilo. Coloquei então na cabeça, que eu seria psicóloga, isso na idade de quatorze, dezesseis anos, ainda no colegial! Meus pais achavam que eu sendo psicóloga trataria de pessoas loucas, que eu acabaria louca, uma ideia preconceituosa ainda nos dias de hoje. Enfim, eu acho que tive uma sorte muito grande, eu entrei na PUC em São Paulo no ano de 1965, no auge da questão política. Eu era, pelas circunstâncias, uma menina submissa, boa aluna, tudo que minha mãe desejava, mas minha ‘’formação política’’, se resumia em dois pontos, existiam os nazistas e os comunistas no mundo…nós fugimos da Alemanha Oriental, meu pai era deputado, era perseguido e ameaçado, então largamos tudo e fugimos para o Brasil.
Entrei na faculdade, na época da lei Suplicy, uma lei que acabava com os centros acadêmicos, que substituía os diretórios acadêmicos, que eram atrelados à ditadura. Os estudantes estavam agitados e revoltados, diziam não à lei Suplicy. Havia uma assembleia, eu ia… Sempre tive essa característica de correr atrás das coisas, me questionava porque eu deveria votar não a essa lei…meu lado rebelde entrou em ação, eu queria entender o porquê de dizer não. Procurei uma amiga que era de Direita, e soube então que era coisa de comunistas. Eu sofria nas assembleias porque havia 500 a favor e cinco contra, e eu era uma das contra. Todos os meus amigos tinham opiniões diferentes da minha, e as poucas que tinham igual, eu detestava todas. Isso durou um tempo, não se sustentou mais, tive uma virada de 180 graus. Através da politica consegui me rebelar em relação aos meus pais, porque deixei de ser aquela menina submissa, vivi minha pré- adolescência tardia aos 19 anos de idade. Passei a me envolver bastante na política.
Profissionalmente eu tinha entrado para a faculdade com a ideia de que queria ser clinica infantil, fui logo atrás. Sempre fui muito arrojada, apesar de submissa, e já no primeiro ano fui atrás de um estágio, que era com uma psicóloga clinica, conhecida. O que se fazia? Aplicavam-se testes, viam-se os resultados desses testes e dizia-se para as mães de crianças ricas o que elas deveriam fazer, mas que não adiantava muita coisa e acabei por me decepcionar com os resultados. Então vi que Psicologia Clinica, eu não queria. Fui fazer estágio no Hospital de Clinicas, vi casos horripilantes, se fazia o diagnóstico até gravíssimo, tinha terapia gratuita, mas, enfim, as mães perdiam um dia de trabalho, condução, iam um dia, outro, e acabavam por não irem mais. Desisti da Psicologia Clinica e fui para a Psicologia Social, que era coerente com tudo que eu fazia na política.
E quanto a Psicologia Social?
Na verdade, na época era uma coisa mais teórica, que depois foi aplicada a trabalhos na comunidade, e em grupos, mas tinha-se essa visão do político, do social. Eu não estava ainda formada e já tinha começado a dar aulas, estava formando-se ainda o corpo docente da PUC em psicologia. Eu sou da terceira turma da Psicologia, então a professora de Psicologia Social chamou-me para ser auxiliar de ensino, comecei a trabalhar como professora na PUC, fiquei trinta e oito anos lecionando. Logo me formei em Psicologia Social, mas eu tinha uma insatisfação, porque a Psicologia Social descrevia a realidade, mas não se aprofundava. Na época era uma psicologia totalmente americana, superficial, então eu pensava que se tentasse um contato com uma outra coisa, em outro lugar. Pedi uma bolsa na Alemanha. Eu era casada, tinha dois filhos ainda pequenos. Conseguimos uma bolsa, eu e meu marido, fomos com os filhos… Ficamos um ano lá, foi uma experiência de vida muito rica…
Por que na Alemanha?
Pela língua mais fácil, eu era fluente em alemão, mas também tinha uma coisa de tentar resgatar as raízes, as origens, embora não tenha conseguido ir para Berlim. Fiquei em Munique, viajei bastante, uma experiência de vida muito gratificante, mas, profissionalmente, não me satisfez. Se os americanos eram colados demais à realidade, os alemães eram descolados e eu queria respostas que me ajudassem a entender o ser humano, então nesse sentido, voltei também decepcionada. A minha experiência de vida em Munique me fez ver na volta a loucura de vida que tínhamos em São Paulo. Com o afastamento é que percebi. Meu marido tinha de procurar emprego e resolvemos mudar então para Campinas, tinha de ser próximo porque eu trabalhava na PUC. Abrimos uma escola, meu marido era pedagogo, onde trabalhei alguns anos como psicóloga escolar, aí enveredei para o caminho da psicologia escolar, uma experiência muito rica. Eu continuava como professora em Psicologia social, comecei a dar alguma coisa em psicologia escolar, educacional, mas os meus questionamentos continuavam…a insatisfação com aquele aparato teórico. Ai, eu fui de ouvinte ao curso de leitura social de Freud.
No seu estudo, em um contexto geral, qual foi a linha que você seguiu?
A linha da Psicologia Social, a formação que eu tive em Psicanálise foi péssima. A professora falava por apostilas sobre “complexo de Édipo”, soava para muita gente – esse cara é louco. A professora era daquele tipo que dizia: ah, você está coçando o pé? Quer dizer que… (risos). O que é isso? Que coisa horrorosa! (risos)
Nesse curso a que eu assisti de ouvinte, eu não sabia nada de Psicanálise, me apaixonei, e pensei: “é isso que estou procurando na minha vida inteira, realmente, um aparato que me ajude a entender o ser humano…”
Foi quando você decidiu pela psicanálise?
Eu me apaixonei, li metade do livro de Freud, foi realmente uma paixão, foi aquela coisa tipo -encontrei o que estava buscando, foi muito rico. Então comecei a pensar em partir para clinica, me afastei da escola, e comecei a clinicar. Porque na PUC tem uma vantagem, é tudo muito flexível. Então eu pude começar a trabalhar numa coisa que a gente chama de núcleo, onde eu conseguia integrar Psicologia Social, com Psicologia Educacional e com a Psicanálise. Núcleo na PUC é assim: os alunos pagam um estágio e ai eles têm disciplinas teóricas que dão subsídios para esse estágio com supervisão. Então, nesse núcleo específico, que se chamava na época Psicoprofilaxia da Infância, os estágios eram em abrigos, escolas, instituições educacionais, tudo por uma questão social. A intervenção era educacional, mas a leitura teórica era psicanalítica. Então, foi integrando.
Dentro desse contexto educacional. Qual a importância da mãe, até onde ela se faz necessária?
Veja bem, há uma coisa que humaniza o ser humano, que é a função materna. O ser humano não se torna um ser humano se não existir alguém que defina adequadamente a função materna; se essa função é exercida pela mãe ou outra pessoa, não tem de ser necessariamente a mãe, mas essa função é absolutamente essencial e deixa marcas profundas, porque a gente se estrutura, nós somos como se fôssemos uma casa ou um prédio, as fundações são o começo da vida. É algo não visível, mas se você tiver problemas graves nas fundações, se depois aparecem rachaduras, são difíceis de serem consertadas, é diferente se aparecer um problema na parede, você pode consertar. Então, os primeiros anos de vida, a psicanálise e hoje a neurociência tem dado um suporte para isso que são fundamentais. E nesses primeiros anos, a função materna é fundamental, assim como a função paterna que também muda. No primeiro momento, a função paterna é dar suporte para que alguém exerça adequadamente a função materna, e depois vai entrando na forma de limites, de cultura. Na realidade, a própria mãe pode exercer, inclusive, essa função paterna. Mas essas duas funções são estruturantes para o ser humano.
Sabe-se da importância da formação até os sete anos, se houve algum trauma nesse período, da gestação até a idade dos sete anos. Se for descoberto após essa idade, esse trauma tem cura?
Tem. A proposta da Psicanálise é exatamente esta, por isso ela é prolongada, profunda. Eu tive uma trajetória dentro da Psicanálise, Freud, pai de todos. A minha paixão há dez anos é Winnicott, que tem uma visão mais flexível, e ele diz que o objetivo de um processo analítico é criar um clima de confiança que permita a regressão, e que você vai viver na transferência, isto é, na relação com seu analista, vai viver aqueles conflitos lá de trás, revivê-los com um outro desfecho, e ai, poder seguir em frente. Esse é o vértice da Psicanálise, agora quanto mais cedo você fizer isso, tanto melhor. Eu diria que uma criança com sete ou oito anos de idade que manifesta problemas e você faz uma análise, claro que se houver colaboração dos pais, ótimo, porque esse é o grande problema, muitas vezes a criança é o sintoma dos pais.
Muitas vezes ou quase 100%?
Sempre tem um elemento dos pais, às vezes é uma família doente, em que o paciente diagnosticado é criança, e aí quando o sintoma incomoda mais, eles levam para a análise, começa-se a trabalhar, a criança melhora, os sintomas voltam para a família e eles acabam tirando a criança da análise.
Mas então o problema não está na criança, está em quem educa?
É complicado. Quando você tem uma criança, e de fato os pais colaboram, às vezes se transformam também, o resultado é diferente.
E nos casos em que os pais não enxergam que o problema é com eles?
São os mais graves. Eu li um romance recentemente que eu achei fantástico. Chama-se “Precisamos conversar sobre Kevin”, de um autor chamado Lionel Shriver, e é uma história romanceada, eu acho que dentro de uma vasta realidade, mas um romance. A história de um menino adolescente psicopata, toda uma história, muitíssimo bem contada, um trabalho psicanalítico sobre a psicopatia, mostra o menino desde pequeno. Ele já mostrava sinais de extrema crueldade, a mãe até via, mas tinha muita rejeição com ele; o pai não enxergava ou fazia que não via, falo de um psicopata ao extremo.
A terapia consegue fazer com que os pais enxerguem que precisam se tratar?
Sim, muitas vezes é um caso de orientação, outras uma indicação para os pais de uma terapia; às vezes a mudança da criança gera essa mudança nos pais, mas eles têm de estar abertos pra isso.
Existe a mãe má, geneticamente falando?
Eu não acredito que isso seja genético não, aliás, vou falar minha opinião pessoal, eu não acredito que nada seja puramente genético. Você pode ter autismo, tem uma abordagem que acha puramente genético, eu penso que há uma predisposição a… uma sensibilidade excessiva, que faz com que a criança tenha uma mãe que falha, e acaba por rejeitar a mãe, que também se afasta. E está criado um círculo vicioso. Então, eu não acredito que exista um gen da mãe má, existem, sim, mães que por toda uma questão – eu lido muito com a transgeracionalidade, coisas que são transmitidas de uma geração a outra- mães que não têm condições internas de ser, o que chamo de uma mãe suficientemente boa que gera saúde; não existe a mãe perfeita. Mas existe a mãe suficientemente boa, que gera saúde.
O que leva essa mãe a não ter essa ‘’saúde’’?
A própria história da mãe. Às vezes pode ter alguma coisa muito traumática com a história dela especificamente, quer dizer, o peso da transgeracionalidade pode ser maior ou menor, mas eu acredito que a questão é a história.
Poderia nos dizer, no seu conceito tanto analítico quanto de mulher, de quem é o machismo, é do homem ou da mulher?
Da sociedade, eu acho que tanto homens quanto mulheres. Se você falar de uma estatística, existem homens machistas, existem mulheres machistas, mas eu acho que estamos numa transição, de uma cultura absolutamente machista, a época do Freud, por exemplo: Viena de 1900 era uma cultura completamente machista, que gerava inclusive as histéricas, que hoje raramente você encontra.
O que gerava essa histeria?
Repressão da sexualidade, e que hoje em dia é outra história, completamente diferente, você encontra o machismo para se defender até de um feminismo exacerbado, uma questão de quem controla.
O tratamento de uma mãe na criação do filho homem é diferente da criação em relação a filha mulher. O que costumo chamar de ‘’mãe dos homens’’. Isso existe até hoje. Pensando assim, o machismo não estaria na mulher?
São fatores culturais. Qual é o papel do homem, o papel da mulher? Como em termos mais inconscientes, mais profundos. A explicação da Psicanálise seria que nós somos seres ‘’incompletos’’, castrados, no sentido de que nunca tem tudo. Isso, para a criança, às vezes se concretiza na diferença do sexo, que é onde ela percebe que uns têm e outros não, depois pode descobrir que não é isso. Mas ter um filho homem seria como se tornasse a mulher completa na medida em que esse filho é uma parte dela. Por isso, às vezes, uma predileção ao homem, enquanto a filha é depositária de si mesma, onde vem a ser muito mais exigente com a filha, que seria esse prolongamento mais claro dela. Nunca se pode fazer generalizações, mas que existe uma certa tendência nessa direção, existe.
Geralmente é a mulher que cuida da relação. Seria como se a mulher fosse a mãe numa relação, embora, conscientemente, saibamos que não é bem assim. Qual é realmente o papel da mulher numa relação a dois?
Eu penso que cada dois são uma unidade diferente. Estamos numa transição de uma sociedade machista para uma outra coisa. Então, em outras gerações, era claro qual era o papel da mulher, e qual era o papel do homem. O homem faz isso, a mulher faz aquilo. Eu posso até ser uma mulher que não se adequa à expectativa, então sou a mulher rebelde, mas está claro qual é o papel. Se um homem convida a mulher para sair, ele vai pagar a conta, vai fazer isso, aquilo, era tudo muito claro. Hoje nada está mais claro. Eu pago, ele paga, cada relação é diferente; com esse homem é assim, com outro é diferente. Isso gera uma insegurança para ambas as partes.
E a criança como fica nesse caso?
Eu vejo com muita preocupação essa coisa da criança hoje em dia, eu acho que um dos problemas mais sérios, hoje, é a falta de limites. E a falta de limites entre outras coisas, tem a ver com a falta de definição de papel, a mamãe faz isso, o papai faz aquilo. Hoje é tudo muito vago. Anos atrás em uma pesquisa, entrevistei uma mãe, operária, que tinha uma filha de 15 anos, a mãe super deprimida, falava para ela: ”minha filha não faça isso, não faça aquilo”, e a filha respondia: “mãe você não entende nada, você é de antigamente”, e ai a mãe não respondia ficava quieta. Então, se numa geração anterior, eu sou mãe, eu mando e pronto. De repente você fica sem instrumentos, e a criança, óbvio, fica perdida.
E a cobrança em relação à escola, aos educadores?
De repente, a escola coloca limites que a família não quer, e gera o conflito. Tem um supervisor que trabalha numa escola de classe média alta, e ele conta o caso de um menino psicopata, ele vem fazendo uma série de coisas, completamente disfarçado, nunca assume nada. A escola chamou os pais dizendo que iria dar uma suspenção para ele, os pais defenderam-no com unhas e dentes, e a escola desistiu da punição. E aí, o esse menino vai continuar fazendo cada vez pior, esse menino vai ser um dos da Av. Paulista. Isso sem falar nos pais que passam adiante a responsabilidade.
Hoje vemos o governo tentando educar o povo a andar no trânsito, a pegar o metrô, as pessoas não esperam o ir e vir do outro. Isso não deveria vir do berço?
Teria que começar a vir por todos os meios, a importância de resgatar limites, relações próximas. Porque o que acontece? Às vezes tem um buraco lá de trás, no caso desse menino, por que eles se tornam psicopatas, faltou alguma coisa lá no começo. Então quando eu vejo esses jovens executivos, trabalham 14 horas por dia, tem babá de dia, à tarde e à noite, e nas férias. Essa criança fica em mãos de babás, e muitas vezes os pais autorizam essas babás a colocarem limites, em muitos casos, as criança ficam completamente perdidas.
A solução então seria uma reformulação na educação dos valores? Qual é a origem do que é certo ou errado na educação?
Há um movimento cultural, o machismo, o feminismo. Algumas gerações atrás, a tendência era o autoritarismo excessivo; a tendência agora é irmos de um extremo ao outro. Então, se o autoritarismo é complicado, mas a falta de limites também é. Tem que se caminhar para chegar ao meio termo. Digo que estamos num momento muito difícil, que está tendendo para esse extremo oposto do autoritarismo.
Qual a influência da religião, da cultura na educação. Por exemplo, na questão dos valores, de poder ou não fazer tal coisa, na formação da personalidade da criança?
Olha! Eu sou suspeita para falar sobre isso, eu sou agnóstica, mas eu acredito profundamente no modelo, quem é esse pai, ou essa mãe, ou outras figuras. Não precisa serem pais, um professor, uma empregada, que são pessoas que têm esses valores e de onde vêm esses valores? Porque não adianta você ser evangélico, rígido, mas no seu dia a dia, você é à toa. (risos). Agora, claro, para esses modelos, às vezes a religião é um referencial importante.
Com a globalização, houve muitas misturas de culturas, oriental com ocidental, costumes diferentes e valores diferentes. Isso pode estar contribuindo para essa confusão toda?
Pode. Estamos num movimento de mudanças, e quando você está no meio de uma mudança, tudo fica muito confuso. Então eu acho que se vive numa época de mudanças rápido demais, e ai se perdem parâmetros; nesse sentido eu acho complicado. Talvez se apegar a uma religião seja uma tentativa de se ter parâmetros, pode ser benéfico ou não.
O quanto pode influenciar as velhas histórias do lobo mau, do atirei o pau no gato? Hoje se vê crianças cantanto a versão positiva dessas histórias. Isso é bom?
Esse é o tema do meu livro; ele é a síntese da minha experiência como professora, psicanalista, como mãe, como avó, tenho três filhos e quatro netos. Com meus filhos, e mais ainda, depois com meus netos, eu descobri o recurso da história como uma forma de ajudar a criança a lidar com situações difíceis. Eu descobri, por exemplo, um neto passando por uma situação complicada, tipo… a mãe está namorando, ele tinha 4 anos de idade e começou a fazer xixi na cama.
Então inventei uma história para ele (tem sempre que se projetar uma autofigura): “então era uma vez um ursinho chamado João, a mãe gostava muito dele, ela saía para trabalhar, ele não gostava muito, mas ela voltava e brincava com ele. E um belo dia ela falou que iria sair no final de semana com o namorado, ele ficou muito bravo”. Ele me fez repetir umas quinhentas vezes a história, mas essa parte ele sempre falava: “mas aí ele foi dormir e apareceu o monstro, que falava: eu vou matar mamãe, vou matar o namorado da mamãe, ai ele acordava assustado e via que tinha feito xixi na cama, e corria para a cama da mamãe, mas ele via que a mamãe estava bem, que a mamãe trocava o pijaminha dele, levava ele para dormir na caminha dele”.
Então, o que acontece nessas histórias? Geralmente falamos, não falem de coisas assustadoras, mas é extremamente o oposto, porque a criança no desenvolvimento dela, tem uma série de fantasias, faz parte da construção do psiquismo. Por que as crianças gostam tanto da história do lobo mau? O lobo mau é agressivo pela boca. A criança sente que é o lado agressivo dela, pela boca. Quando você conta uma história, de alguma maneira nomeia, você compartilha.
Nessas histórias que eu sugiro, a ideia é que os pais inventem, eu dou sugestões de como inventar as histórias; eles estão dizendo, de alguma forma, eu sei o que você está sentindo, tudo bem se sentir isso, e vai ter um final feliz no sentido de que não vai atuar, quer dizer – eu quero matar mamãe, mas e não vou matar a mamãe. Por que a bruxa e a fada? A bruxa é a mãe de quem eu tenho raiva, a fada é a mãe boa. Então, quando eu dou espaço para falar da bruxa e asseguro que ela é muito má, que ele tem direito de ter raiva dela, mas ela vai morrer e quem vai sobreviver é a fada, a mãe boa, isso tranquiliza a criança, ajuda ela a superar as situações conflitivas.
Seria uma fantasia dentro de uma realidade?
É simples: você projeta uma figura, pega uma situação que a criança está vivendo, nem precisa disfarçar muito – esse personagem vive uma situação parecida. Aí você insere os sentimentos que você acha que ela está sentindo e dá um final feliz, que vai ser superado, ou vai ser controlado. Então, a tendência atual vai na direção oposta daquilo que nós psicanalistas achamos que deve ser, que é anular.” Atirei o pau no gato” ajuda a criança a extravasar a agressividade de uma forma aceitável.
Ela pode cantarolar isso?
Veja bem. Resposta da Psicanálise: agressividade faz parte do ser humano, é uma agressividade necessária, saudável e há a agressividade destrutiva. O que é a agressividade construtiva? Quando você pensa, tem de atacar na sua cabeça: “será que isso faz sentido, será que não”, e se apropriar disso. Você atacou, mas de maneira absolutamente necessária, não há pensamento sem isso.
Poderia se mudar a palavra “atacar”?
Sim, mas envolve a palavra no sentido de não que você tenha de destruir, mas olhar para isso e se perguntar: “será que faz sentido, será que não”. É a agressão. Aí você pode dizer: “é mesmo”. Você se apropriou disso, ou, eu acho que não, então tudo bem. Você não tem pensamentos sem essa agressividade. Para você comer, tem de mastigar a comida, você destrói a comida, mas é comida; para eliminar uma parte e transformar outras, você precisa da agressividade para crescer, para se defender, para avançar, para lutar pelo seu espaço.
Uma palavra que poderia ser usada, nesse caso, seria “ação”?
Não necessariamente. Nem toda ação tem a ver com agressividade, mas tem a ver com desfazer algo para construir algo novo.
Podemos desmistificar a palavra “agressividade” que tem associação com “bater”?
Sim, mas o que estou querendo dizer é que, às vezes, se você não dá espaço para a agressividade, você tem comprometimentos graves, dois tipos: uma metáfora, seria como apressar a panela de pressão: se você sabe levantar a válvula na hora certa e de forma adequada, vai ser muito útil, necessária. Mas se você não faz isso, pode explodir, essa explosão pode se dar para fora, ai sim, destrutividade, ou para dentro, depressão, inibição generalizada. Nossos consultórios estão cheios com problemas de pessoas com agressividade. Então, o papel da cultura, da educação, é dar canais de expressão da agressividade, como: literatura, música, todas as construções culturais.
De alguma forma você canaliza a sua agressividade, e isso é necessário. Então, é uma direção extremamente perigosa e tem a ver com uma determinada leitura da realidade em que não se considera o inconsciente. Estou falando sobre a forma psicanalítica, em que se diz “tudo o que importa é o momento” – não mostre o revólver, porque ele vai ficar agressivo; ele não vai ficar agressivo, porque você mostrou o revólver na televisão. Poder ver um filme agressivo, eventualmente pode ser uma forma de você viver uma forma aceitável a sua agressividade, por identificação, não precisa fazer, só assistir.
Uma coisa muito confusa, no mundo em geral, é saber o que os filhos podem ou não?
Veja, há confusões. Sexo, por exemplo: uma criança assistir a filmes de sexo, ela não tem recursos para elaborar, entender, vai ser péssimo para ela. Mesmo que você ponha uma criança para assistir filmes de terror, ela também não terá recursos para entender, então também é péssimo. Mas se você deixar assistir a um desenho agressivo, por exemplo, desde que não sejam sádicos, ajuda a criança.
Hoje a criança está mais precoce, os questionamentos começam mais cedo. Qual o momento de contar histórias?
Está. Tem uma influência cultural também, e que inclusive gera muita confusão também. A sexualização precoce das meninas. O desenvolvimento saudável, se dá de uma forma íntegra, as coisa se juntam. Quando você super desenvolve um lado, ele não consegue se integrar com o restante, e aí gera uma dificuldade. Como também, a questão de envelhecer, que é uma dificuldade, a pessoa fica com o rosto de 40 , com a mão de 50, com o pescoço de 60, enfim, nada se junta.
Então, está começando cedo ou “cada caso é um caso”? A família vai ter de sentir a necessidade da criança para poder começar as historinhas?
Depende. Você pode contar historinhas desde bebê, e aí o que eu acho importante é ficar atento ao que a criança está vivendo, as dificuldades dela, saber o que ela está enfrentando, e adaptando a história àquilo que a criança está te mostrando que esta difícil para ela.
Você já tem resultados dessa forma de contar histórias?
Sim, por isso eu quis passar adiante.
Como mãe, você é educadora o tempo todo?
Depende do que você entende por educadora. Eu sempre tentei ser eu mesma. Claro que ser educadora faz parte do “eu mesma”, assim como eu procuro não ser uma psicanalista para os meus filhos ou para mim mesma; eu sou mãe, sou avó. O fato de ser psicanalista está na minha maneira de ser; eu tento ser avó, ser mãe, não psicanalista.
Qual a diferença de ser mãe e ser avó?
Eu acho maravilhoso ser avó (risos), porque como avó, você fica só com a parte boa, você pode ter aquela relação de qualidade. Quando que criança cansa, incomoda. Como mãe, você tem toda responsabilidade de educar esse filho, de cuidar, durante sete dias da semana. Como avó, você não tem essa responsabilidade, então você pode curtir, e no momento que você sente que seu limite chegou, é só dizer tchau, vou embora (risos). Eu acho maravilhoso.
Como você identifica sua mãe, com a sua idade, como ela era?
A minha mãe foi uma depressiva crônica.
Quando você identificou isso?
De alguma forma, eu percebi isso a vida inteira. Eu costumo dizer que a minha salvação foi uma empregada. Nos primeiros anos de vida, com a guerra, meu pai tinha uma situação muito boa, era deputado, e aí minha mãe, uma pessoa perdida, angustiada, deprimida.
Ela teve um histórico terrível, traumático, a culpa do sobrevivente, a família toda foi exterminada, o desamparo. Casou com meu pai porque ele estava lá, queria casar com ela, não tinha mais ninguém, mas não era apaixonada por ele. Então, como mãe, ela me passou muita angústia, eu não aceitei peito nem mamadeira, eu tinha de tomar com colherinha, porque ela devia me passar tanta angústia.
A criança já sente isso desde cedo?
Sente, sim, recém nascido. E aí apareceu uma viúva de guerra, com uma filha doente. Meu pai cuidou da criança, foram morar em casa nos meus primeiros quatro anos de vida. Foi uma pessoa que pôde exercer adequadamente a função materna.
Sua mãe faleceu cedo?
Não, minha mãe faleceu com 69 anos, mas foi, a vida inteira, uma pessoa deprimida.
E trabalhando nessa área, conseguiu ajudá-la ou só aceitá-la?
O que eu consegui fazer foi levá-la para uma análise, mas que já era um pouco tarde, já tinha uma certa idade, não foi muito para a frente e eu, como filha, estava ligada à situação. Foi muito complicado.
Professora, educadora, escritora. Como é para você atravéz dos livros, ser propagado aquilo que você prega?
É vital. Às vezes as pessoas me perguntam “você é agnóstica, qual o sentido da vida pra você?” O sentido na vida é o que eu vou deixar nos outros, nos meus filhos, nos meus netos, nos meus pacientes, nos meus alunos, nos meus supervisionados, e nos meus leitores. Por isso essa necessidade de passar adiante aquilo que eu de alguma forma li, vivi, que eu descobri.
Como psicanalista, existe a tendência de analisar tudo e todos?
Não, porque você enlouquece e enlouquece as pessoas junto.
Você tem um hobby?
Leitura. Eu adoro cinema, mas os livros são essenciais.
O que você faz em momentos de lazer?
Eu gosto de estar com os outros, com os amigos, com a família, gosto de dançar – embora tenha poucas oportunidades – livros, filmes.
E os filhos?
Tenho muito orgulho deles. Eu perdi meu marido há dezessete anos, passei por situações bem complicadas, mas acho que dei conta, meus filhos estão muito bem, os três profissionalmente estão bem.
Seu relacionamento com eles, como é?
Muito bom, muito próximo. Tenho a sorte que todos os três moram em Campinas, dois casados, a caçula vai casar logo. Tenho quatro netos; a minha filha mais velha tem dois filhos – um de doze anos e outro de quatro anos; o outro filho tem uma de três e uma de dois. Eles são a minha grande fonte de afeto.
Você não pensou em casar-se novamente?
Não. As pessoas acham um pouco estranho quando falo isso. Eu acho que estou vivendo a melhor fase da minha vida, porque eu tenho uma coisa que nunca tive, uma liberdade maravilhosa. Eu faço o que quero, quando quero, eu trabalho porque gosto de trabalhar, trabalho tanto quanto eu quero trabalhar, estou com meus amigos quando quero, e essa liberdade é uma questão fantástica. Namorar, sim, mas se fosse cada um na sua casa – compartilhar os bons e maus momentos, o dia a dia eu não quero.
Quais os seus cuidados com a saúde?
Bastante. Como eu pretendo trabalhar ainda, porque eu amo de paixão meu trabalho. É como carro zero, se você não fizer manutenção, ele vai pifar. Eu tenho diminuído um pouco o horário de trabalho. Todo dia pela manhã eu faço atividade física, aeróbica e musculação, todos os dias. Cuido muito da alimentação, tenho uma tendência genética a engordar; tenho 64 anos e uma saúde ótima. Agora tem uma coisa, eu me cuido, mas não quero saber de plástica. Tem as rugas, mas é a história da minha vida; por mais que eu cuide, não vou ter mais o corpinho de vinte anos.
Em cada fase da vida, você tem de fazer o luto, você tem de aceitar que algumas coisas foram perdidas para dar espaço para as coisas novas. Um dos conceitos de saúde mental do autor que eu gosto tanto, Winnicott, é ‘’saúde mental, é a capacidade de viver cada fase de vida como tal’’. Hoje em dia se coloca uma energia enorme para tentar dizer que “não sou velha”. Existem pessoas que dizem ‘’eu sou jovens por dentro’’. Eu não sou jovem, eu era diferente quando jovem. Você tem algumas limitações e tem alguns ganhos; eu tenho a maturidade, equilíbrio que eu não tinha quando jovem, não tenho mais a memória, tem uma série de coisas que você perde.
Filosofia de vida?
Poder viver intensamente cada momento, e poder valorizar essa coisa das marcas que você vai deixar. Poder estar inteira em cada momento, poder passar adiante aquilo que você acha que vale a pena passar, acertos, erros, descobertas…
Você se sente uma plena mulher?
Sim, eu nunca fui tão feliz como sou hoje. Fiquei viúva com quarenta e sete anos, uma idade complicada, onde já não é muito fácil recomeçar, mas que ainda é cedo para encerrar. Vivi um ano de luto, depois vivi a adolescência aos cinquenta – que não tinha vivido na época. Encontrei um namorado, vivi uma fase de adolescente, de paquerar, namorar. Foi ótimo, durou uns dois anos, e aí acabou. Depois vivi outras relações um pouco mais estáveis. Hoje eu penso quanta coisa eu vivi nesses dezessete anos que eu não teria vivido se não tivesse perdido meu marido. Eu tive de enfrentar um monte de coisas novas sozinha, que não teria enfrentado com ele.
Uma mensagem para as mulheres?
Ao invés de olhar para fora – o que esperam que eu seja – tente ser você mesma.
Por: Mariliz Consul – Diretora de Redação – E-mail: [email protected]
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