Fazer arte, arte de um modo em geral, no nosso país é um ato de resistência. As artes dramáticas no Brasil jamais seriam as mesmas se entre suas estrelas não houvesse uma chamada Nicette Bruno.

Com mais de 60 anos de carreira, iniciada no teatro e entremeada por cinema e televisão, Nicette conseguiu, antes da maioria das mulheres da sua geração e mesmo de muitas dos nossos dias, alcançar e manter o equilíbrio entre a vida profissional e familiar. É a prova de que uma mulher bem sucedida profissionalmente pode ser feliz nos relacionamentos e na administração da vida pessoal e familiar.

Em uma entrevista por telefone, conversamos de maneira agradável como se estivéssemos frente a frente. Nicette, com seu jeito gostoso e entusiasmado de falar, contou como começou a carreira, como é a vida em família, falou do casamento, dos filhos, de filosofia de vida, de ser mulher na maturidade, da caminhada para ser uma Plena Mulher.

Nicette Bruno jovemO que a levou você a ser atriz, teve algum incentivo da família?

Comecei minha atuação artística os 4 anos, comecei na rádio num programa infantil, depois, no colégio onde estudei, o Lafaiete, tinha curso de expansão cultural onde todos os alunos desenvolviam suas tendências artísticas, então, eu fui sempre lidando com o movimento da arte. Estudei piano, tinha audições de piano em que tinha que me apresentar, estudei declamação, naquela época era pouco comum as meninas terem todo esse desenvolvimento artístico, mesmo que não fossem seguir a carreira profissional.

Com 11 anos fui para a Associação de Moços onde tinha uma atuação muito grande. Aconteciam os espetáculos de dois em dois meses, fazia shows, preparava peças. Depois fui para o teatro universitário, teatro estudante e aos 14 anos comecei profissionalmente na companhia da Dulcina.

Eu tive a felicidade de nascer numa família que tinha uma abertura muito grande e um envolvimento com a arte. Minha avó era médica mas cantava lindamente, dos irmãos dela, um era arquiteto, outro engenheiro, um tocava piano o outro violino. Dos seus filhos, duas filhas estudavam canto, sendo que uma era a mamãe, dos outros dois irmãos, um casal, foi para municipal estudar dança. Nenhum profissional, a primeira fui eu. Depois da minha estreia no teatro é que mamãe começou a sua atuação como atriz.

Como foi sua trajetória na cultura artística através dessas décadas de profissão?

Vivi sempre o cinema, vi surgir a televisão no país e tive a felicidade de participar do primeiro programa de televisão, que foi um show na TV Tupi em São Paulo. Mas no Rio de Janeiro a Tupi fez o primeiro show de abertura do canal de televisão para o Brasil e eu fazia parte desse show, participava de esquetes, jovem já tendo iniciado profissionalmente.

Passou por diversas questões políticas?

Na época existia um preconceito muito grande, aliás a nossa profissão nem era reconhecida. Também participei de um movimento, de todo um trabalho de conseguir que a nossa profissão tivesse um reconhecimento e que nós pudéssemos ter carteira profissional. Vivenciei toda a transformação do teatro brasileiro. Foi naquela época que o comportamento profissional do ator, do que exercia esse oficio, começou a mudar.

Por exemplo, o teatro brasileiro sempre sofreu uma influência muito grande do teatro francês e do teatro português. Dulcina de Morais foi uma atriz muito atuante no sentido de modificar o comportamento dos atores de sua companhia. Os atores eram contratados por ano, então eles de quando em quando mudavam as peças. Por exemplo, nós tínhamos que obedecer um horário, fazíamos o espetáculo à noite, eram duas seções diárias de terça a domingo, alias foi a Dulcina que instituiu a folga semanal no país.

Você pensou alguma vez em parar?

Não! Eu sempre tive muita vontade, e graças a Deus consegui ter a minha vida pessoal e minha dedicação ao lar de uma forma muito forte. Consegui conciliar a minha vida como mulher, mãe, esposa, dona-de-casa com a minha profissão. E, claro, agradeço a Deus a ajuda que tive Dele, porque encontrei um parceiro que me ajudou muito, nós trabalhamos muito em parceria mesmo.

Tive minha mãe, minha família que me ajudava a cuidar das crianças. Nunca parei e nunca pensei em parar, mas cada vez que ficava grávida eu trabalhava até o momento em que podia. E quando as crianças nasciam o primeiro ano de vida deles eu me dedicava inteiramente a eles, porque acho que o primeiro ano de vida de uma criança é fundamental para uma estabilidade emocional. Quando eles começavam a ter uma idadezinha que eu podia já começar o meu desenvolvimento profissional novamente, aí eu retomava.

Nicette com a famíliaE a família, filhos e companheiro todos na mesma profissão, os assuntos são sempre os mesmos?

Não, não é! Tudo é muito bom, porque nós todos vivenciamos o mesmo universo, mas somos pessoas diferentes, não existem duas pessoas iguais. Mesmo Paulo (Paulo Goulart) e eu, nós temos um objetivo comum de vida, os nossos valores se parecem, mas nós somos de individualidades diferentes. Assim são os filhos também, cada um tem sua individualidade diferente do outro, mas com essa sintonia de propósito de vida. Os valores fundamentais da vida, esses são os mesmos, o que nos une muito!

Os filhos desde cedo demonstraram a vontade de seguir a profissão, acompanharam todos os processos e dificuldades da profissão. No início, ficamos muito preocupados quando eles demonstraram essa vontade e as coisas iam surgindo, as oportunidades aparecendo. Tínhamos a preocupação de que o interesse deles não fosse apenas fruto do meio ambiente. Todos fizeram teste vocacional, e não deu outra coisa (risos). Nós sempre tivemos uma relação de amizade muito forte.

55 anos de casamento e a vida sexual na maturidade como se dá?

Ela se dá de uma forma muito boa, porque a nossa qualidade de relação vai melhorando, você vai crescendo junto. Claro que vai se modificando, o impulso da paixão vai se modificando, mas vai solidificando um amor muito forte. E pelo menos na minha opinião a  relação sexual deve ser uma consequência de um sentimento maior, aí você atinge uma plenitude!

Digo que a  relação vai melhorando, porque você vai adquirindo uma qualidade muito grande, muito forte, uma sintonia. Então, ela vai se modificando, mas não diminui em nada, você poderá diminuir na quantidade e não na intensidade. O que acho fundamental e nós sempre mantivemos, por exemplo: eu sou muito romântica e Paulo também à maneira dele. A nossa forma é diferente, mas somos românticos os dois. O Paulo é muito atento, ele é cavalheiro, atencioso, ele me surpreende a cada momento. Eu também procuro surpreendê-lo.

Nicette com o marido PauloNicette com o marido Paulo Goulart

O nosso relacionamento até hoje, que são 57 anos, um ano de namoro e um ano de noivado e depois casamos – porque naquela época se namorava, ficava noivo – até hoje não caiu numa rotina. Por exemplo, Paulo está no Rio agora, ele foi começar a novela, todo dia pela manhã ao levantarmos, quem acorda primeiro liga para outro e a gente namora por telefone. Vou dizer uma coisa, a gente não percebe que passou tanto tempo!

Sua maturidade é diferente da de sua mãe na época em que ela tinha a idade que você tem agora?

A minha mãe era uma criatura muito avançada para época, a minha avó também. Então eu tenho geneticamente uma herança muito legal. Eram pessoas, claro, com uma rigidez de caráter, de dignidade, isso sempre foi uma característica da nossa família. Vovó sempre foi uma pessoa muito firme, no sentido de moral, moral no sentido de vivenciar uma verdade. E mamãe às vezes parecia mais jovem que eu, às vezes eu era um pouco mais careta do que ela.

Filosofia de vida?

Nós temos uma filosofia de vida, somos espíritas, entendemos a vida numa outra transcendência, isso nos amplia o poder de análise. A sua visão critica passa a ser analítica e não critica negativa. Na nossa profissão ajuda muito, porque cada personagem que a gente realiza é um estudo da alma do ser. Então isso vai fazendo com que a gente comece a conhecer um bocadinho o ser humano, e aprenda a não julgar as pessoas.

Apesar de ser uma personalidade, você sofre ou já sofreu algum tipo de preconceito em relação a ser uma mulher madura?

Olha, até agora nada. Sabe na nossa profissão quanto mais tempo passa, você adquire uma experiência que facilita a atuação. O ator pode ficar até o fim dos dias que sempre existirá papel para ele. Eu sofri mais preconceito quando comecei, porque era menina, mas hoje em dia não, a gente tem uma resposta do público tão gratificante. Onde quer que a gente vá, eles são muito carinhosos com a gente, isso é muito bom, estimula e encoraja!

Costumo dizer para os jovens, “fazer arte, arte de um modo em geral no nosso país é um ato de resistência”, porque nós não temos incentivo, os incentivos são relativos. Precisa estímulo para que cada artista que demonstre talento, tenha um investimento grande no seu desenvolvimento. Porque o brasileiro é muito talentoso, tem uma vivência fantástica, imagine se nós tivéssemos amparo e oportunidades.

Nicette BrunoE os momentos de lazer?

Sou muito festeira, e Paulo também! A gente gosta muito de receber convidados em casa.  Teve uma época em que nós saíamos bastante, quando tinha um grupo gostoso, um show que queríamos ver. Mas a gente sempre trabalhou muito… Viagens, é uma coisa que a gente gosta e curte muito. Nós já viajamos bastante, mas sempre viajamos trabalhando, e é claro que nós aproveitamos. A gente sempre teve oportunidades de viagens em função de um trabalho, então esse é o nosso lazer, é o que a gente gosta de fazer.

O Paulo é muito mais caseiro que eu, eu gosto de sair às vezes, à tarde, ir ao shopping… Fazer visitas é raro, nós gostamos muito mais de receber, adoramos, qualquer coisa é motivo para chamar o pessoal para fazer um macarrãozinho e bater um papo gostoso.

Você tem algum cuidado especial com a saúde?

Nada excessivo. Por exemplo, eu caminho, tenho esteira em casa, mas não sou muito assídua. Não sou de usar muitos cremes, o que faço sempre é limpar muito bem a pele à noite, não durmo sem antes fazer uma limpeza. Gosto de me arrumar, gosto de ir ao cabeleireiro, fazer as unhas, ir ao podólogo e de fazer massagens de vez em quando.

Eu não poderia ser só profissional, sem ter uma vida doméstica, e não poderia ser só mulher da casa, porque eu ficaria frustrada. Então, eu acho que a vida me proporciona uma coisa muito equilibrada e muito boa.

Você passa uma disposição incansável, poderia dizer que você é uma Plena Mulher?

Ah! Não sei… Olha, alcançar a plenitude, é muito difícil né? Acho que seria uma vaidade muito grande eu dizer isso. Eu procuro cumprir todo um seguimento de vida, para ser uma mulher com características promissoras para o nosso sentido. Eu acho que nós todas ainda temos coisas a conquistar.

Então, somos plenas naquilo que desejamos, na busca para realizar aquilo que necessitamos, aquele objetivo maior que a mulher quer alcançar. Mas ainda falta, nós precisamos ter um pé de igualdade de fato, igualdade no sentido de que somos todos seres humanos iguais, nos respeitamos, dignificamos a nossa condição. Temos que continuar nesta busca, nesta batalha pacífica, sem querer superar o outro. Quando chegar esse momento, e eu não sei se vou chegar a ver isso, mas talvez as minhas netas consigam, porque está se encaminhando para isso, vai ser maravilhoso!

Nicete, com seu jeito atencioso, deixa um recadinho para as leitoras do Plena Mulher:

“Um beijo muito carinhoso para todas que participam desta batalha!”


Paulo Goulart faleceu no dia +13/03/2014 com 81 anos em São Paulo/SP.


Por: Mariliz Consul – Diretora de Redação – E-mail: [email protected]

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