As palavras têm mais força do que muita gente pensa, e elas são mais importantes ainda quando se trata de saúde mental. Frases aparentemente inofensivas que dizemos no dia a dia podem causar problemas para pessoas vulneráveis. Um exemplo disso é “cometeu suicídio.” Essa é uma expressão que muitas pessoas ainda utilizam naturalmente, tanto na imprensa quanto em conversas comuns, mas que pode ser mais prejudicial do que aparenta.
Embora o termo possa parecer inofensivo, ele é, na verdade, carregado de culpa e estigma. Tanto é assim que as diretrizes de relatórios delineadas por organizações de mídia e saúde mental são estritamente contra o seu uso.
“O termo ‘cometeu suicídio’ é prejudicial porque para muitas pessoas, se não a maioria, evoca associações com ‘cometeu um crime’ ou ‘cometeu um pecado’ e nos faz pensar em algo moralmente repreensível ou ilegal”, explica Jacek Debiec, professor do departamento de psiquiatria da Universidade de Michigan, nos EUA, especializado em estresse pós-traumático e transtornos de ansiedade, em matéria do portal Huffington Post.
A frase “cometer suicídio” também ignora o fato de que o suicídio é muitas vezes a consequência de uma doença não tratada, como depressão, trauma ou outro problema de saúde mental. Deve ser considerado da mesma forma que qualquer condição de saúde física, diz Reidenberg. “Você não pode cometer um ataque cardíaco. Em vez disso, você pode ouvir alguém dizer que “morreu de um ataque cardíaco”. Morrer por suicídio é o mesmo. Ao colocar a palavra ‘cometeu’, isso discrimina ainda mais aqueles que perderam a batalha contra uma doença”, complementa na mesma matéria Dan Reidenberg, diretor executivo da organização Suicide Awareness Voices of Education.
Reidenberg acrescentou que a melhor frase a ser usada é “morreu por suicídio”, uma vez que envia a mensagem de que a morte foi causada pela condição de saúde mental.
Os especialistas defendem que isso é importante a longo prazo. Pode soar exagero se concentrar em apenas duas palavras, mas as escolhas de palavras – intencionais ou não – têm implicações muito mais amplas. Usar o vocabulário correto da saúde mental é crucial para eliminar estereótipos negativos ligados à doença mental e às consequências desses estereótipos agora e no futuro – pesquisas mostram que quando há estigma, as pessoas evitam procurar ajuda, o que poderia salvar vidas.
“O fato de que estamos tendo problemas em escolher palavras ao falar sobre suicídio reflete nossos problemas mais profundos com a compreensão da saúde mental em geral. A linguagem que usamos reflete nosso sistema de valores, conscientes e inconscientes. Usar uma linguagem preconceituosa ou degradante nos impede de reconhecer problemas de saúde mental, procurar ajuda e fornecer ajuda”, explica Debiec.
Dizer que alguém “cometeu suicídio” transmite vergonha e transgressão e não captura a patologia da condição que levou à morte. Isso implica que a pessoa que morreu tinha uma posição ativa, era uma perpetradora, e não a vítima de uma doença.
“As palavras têm consequências. Eu encorajo as pessoas que pensam que a linguagem em torno da saúde mental não é importante para pensar sobre suas próprias experiências quando sentem que o julgamento ou as palavras de alguém os ferem injusta e profundamente”, sugere Debiec.
Reidenberg enfatiza que é hora de começarmos a considerar o suicídio como um subproduto perigoso de uma condição de saúde que pode – e deve – ser evitada. “Isso, claro, requer tratamento. Mas também inclui prestar atenção às nossas palavras, para que aqueles que vivem com problemas de saúde mental sintam que não serão alienados por se manifestarem e procurarem apoio”, salienta.
Pessoas em primeiro lugar
O Instituto Internacional de Gerenciamento de Riscos (IRMI) vai além e sugere outras mudanças na forma de tratar pessoas que sofrem com o suicídio. “Usar “suicídio” como substantivo para descrever uma pessoa (“o suicida foi levado para o necrotério”) é considerado desumanizante e reducionista. Quando identificamos uma pessoa apenas por sua doença mental (“Ele é bipolar”), diminuímos a integridade desse indivíduo. Não diríamos: “Ele foi um ataque cardíaco”. Em vez disso, precisamos definir uma pessoa pela sua vida, não pela maneira da morte, e dizer: “Ele foi uma pessoa que morreu de suicídio; ele também adorava jogar golfe, preparar cerveja e escalar montanhas”. Ou: “Ela é uma professora, escritora e amante de animais que vive com uma condição bipolar”. Então, vamos colocar as pessoas em primeiro lugar e focar na sua resiliência. Em vez de ‘tentativa de suicídio’, podemos dizer ‘ele é uma pessoa que viveu uma tentativa de suicídio’”, sugere texto publicado no site da instituição.
“O teste decisivo para falar sobre suicídio é substituir a palavra “câncer” pela palavra “suicídio” para ver se a sentença ainda faz sentido ou se tem uma conotação negativa. Nós não diríamos “cometeu câncer” ou “câncer bem-sucedido” – simplesmente diríamos “morte por câncer” ou “morreu de câncer”. Assim, quando se trata de suicídio, devemos dizer ‘morte por suicídio’ ou ‘morreu de suicídio’”, complementa o texto.
Passo a passo
Dan Heidenberg salienta o impacto do suicídio na sociedade americana. “O suicídio é uma grave crise de saúde pública. Mais pessoas morrem por suicídio do que por homicídios, acidentes de carro e câncer de mama. O suicídio é um problema real que deve ser levado a sério o tempo todo”, destaca. Ele afirma esperar que mais pessoas tenham mais compaixão com relação ao suicídio no dia a dia, e não apenas após um suicídio de alguém famoso.
No Brasil, as mortes por suicídio têm uma média menor do que a mundial, mas ainda assim são altas. Segundo matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 2018, há um suicídio a cada 45 minutos no país, enquanto no mundo alguém morre por suicídio a cada 40 segundos.
Na mesma matéria, o psiquiatra Jorge Jaber, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, especialista no tratamento de dependentes químicos salienta que o suicídio é a causa de morte mais facilmente evitável entre todas as doenças. “Enquanto doenças infecciosas, cardiovasculares e tumores precisam de grande aporte médico e cirúrgico de alto custo, o impedimento médico do suicídio pode ser atingido com remédios bem mais baratos e somente conversando com o paciente”.
“Vamos continuar trabalhando para evitar que tragédias aconteçam, celebrar aqueles que ainda estão vivos e fazer tudo o que pudermos para derrubar o estigma que cerca a saúde mental e o suicídio. É somente falando sobre isso que vamos conseguir que as pessoas se abram antes que uma tragédia aconteça”, defende Heidenberg.
Deixar a frase “cometer suicídio” cair em desuso é parte desse esforço e pode ser um pequeno passo, mas já é um avanço caso ajude que mais pessoas procurem ajuda com o fim do estigma.
Fonte: Hypescience [Huffington Post, Estadão, IRMI]
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