Passei com o carro voando, beirando o canteiro central da rodovia e só deu tempo de ver, de relance, o corpo do cachorro estirado ao lado da mureta de proteção. Ainda olhei pelo retrovisor e, por pouquíssimo tempo, vi seu corpo marrom, inchado, sujo de poeira e as patas rígidas, esticadas, apontadas para o lado da pista.
A boca aberta num estertor feroz de desesperado como se, no último momento, quisesse estraçalhar a dor invisível. Distanciei-me mas sua imagem ficou em minha cabeça. Queria não ter olhado.
Mas olhei. Se pudesse admitir que o cão raciocinasse ou estivesse em pleno domínio do seu instinto o que estaria ele desejando fazer? Tentando atravessar a rodovia onde tantos veículos passavam em alta velocidade? O que poderia haver do outro lado se é que estivesse mesmo querendo ir para lá? Uma cadela no cio? Uma lata de lixo exalando algum cheiro de carne podre ou um resto de lanche? Quem sabe uma poça d´água? Talvez até a sua própria casa da qual andava perdido e que, naquele instante, farejara? Ou o seu querido dono de quem se separara e procurava sem êxito acompanhar? Tantas perguntas desnecessárias a mim mesmo e todas sem resposta. Todavia bastava não pensar.
Mas pensava. Talvez nem fosse nada disso. Imaginei então outras possibilidades: que tivesse sido envenenado longe dali e, por fim, agonizando, sem outra alternativa melhor para seu alento final, tivesse escolhido aquele canto na beira da rodovia para deitar e sair da vida. Ou então poderia ter morrido de qualquer doença e seu dono, não tendo onde descartá-lo, o abandonou ali durante a noite para ser carregado pelos coletores de lixo ou recolhido pelos funcionários que tomavam conta da estrada. Ou mais insólito ainda: aquela coisa inerte poderia ser só um velho e grande bicho de pelúcia, um estorvo atirado de alguma mudança. É, posso ter me iludido e, quem sabe, não fosse mesmo um animal. Porém, agora é muito tarde para admitir esse engano. Era um cão! Deu para ver nos olhos assombrados a dor lancinante e incompreensível e a bocarra escancarada querendo buscar o ar para o último ganido. Gostaria de esquecê-lo.
Mas não esqueci. Saindo da rodovia, o cadáver já muito distante, me convenci de que era mesmo um cão e fora atropelado e desmantelado por algum carro ou caminhão daqueles enormes. Pode ser que o motorista o tenha visto e tentado desviar mas, com o fim de evitar um acidente ainda maior, manteve o veículo em linha reta atingindo o animal em cheio. E o bicho, coitado, sem noção da irracionalidade do trânsito e daquele seu inimigo de última hora, não teve tempo para reagir e voltar nos próprios passos. E justo quando hesitou, olhando o monstro que se aproximava rapidamente, não teve escolha: ficou paralisado na frente daqueles olhos de vidro brilhante que o hipnotizaram. A pancada foi seca, desconjuntou seu esqueleto, foi atirado longe, rodopiou e depois, arrastando-se, chegou até aquele canto imundo do acostamento. E lá estendeu-se, descaiu a cabeça de mansinho e aguardou o fim que não conhecia. O corpo refletido na cor dos veículos que passavam. E ali ficou, imóvel, esperando que eu passasse e o visse. Desejaria não ter visto.
Mas vi. E muito depois, ao entrar na cidade, ainda imaginava o cão na beira da estrada cozinhando sob o sol. Ou não. Pode ser que nesse ínterim os homens da limpeza já tenham feito a sua remoção. Caberá ao tempo, agora, fazer com que se perca qualquer interesse sobre ele. Sem que nunca se saiba que cão fora, de quem pode ter sido e o que fazia por lá. E assim só me restará riscá-lo da memória como se ele nunca tivesse existido.
Porém, existiu. Apenas um cão. Mas poderia ser eu. Poderia ser você.
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